(Um percurso pelo Livro do desassossego)
(Os números entre parêntesis correspondem-se com as páginas do Livro do desassossego, segundo a edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, Porto, 2014)
1. Um livro impossível
Se um livro é uma obra concluida, pronta a editar, o Livro do desassossego não é um livro. Embora trabalhasse nele até ao fim da sua vida, Pessoa nunca lhe deu uma forma definitiva. O que lemos é a conjetura dos editores, que ordenam os trechos, incluem uns e excluem outros e propoem leituras de algumos fragmentos duvidosos. E não há duas edições iguais. Mas isto é apenas um facto, e, como todo facto, acidental. O importante (o não acidental) é que Pessoa não terminou o livro porque o livro é mesmo impossível. Não admira então que num dos primeiros trechos que escreveu, Peristilo, fale do seu livro como um “regato que corre ao abismo” e de um “Rio de Imperfeição dolorida” pelo qual descende o livro como um barco à deriva “para nenhum mar que se sonhe” (435) Desde o principio, não só fala da imperfeição do livro, do seu fracasso, mas também diz que não leva a lugar nenhum ou ao abismo, que é o lugar de que nada se pode dizer. Por isso, o que define, se se pode falar assim, a sua escrita é um “devaneio interrupto” (220). O devaneio desenha uma escrita errática (“o meu livro de impressões sem nexo”, 40 e 351), inevitavelmente fragmentária, como se o autor não pudesse dominar os seus pensamentos, e assim passa do desenvolvimento de uma ideia, que não terminou, a outra nova: “Todo pensamento, por mais que eu queira fixá-lo, se me torna, tarde ou cedo, em devaneio. Onde quisera pôr argumentos ou fazer racioncínios, surgem-me frases, primeiro expressivas do próprio pensamento, depois subsidiárias das primeiras, por fim sombras e derivações daquelas frases subsidiárias” (302). No entanto, este devaneio tem uma lógica, embora não tenha só uma.
Diz o antropólogo francês René Girard que “nenhum texto pode aludir ao principio de ilusão que o governa”. O principio que governa este livro ingovernábel é a sua própria impossibilidade. Isto não se alude (ainda que não se eluda), porque o aludir implicaria apagar a escrita à medida que se escreve, como se ao passar o “mata-borrão” ficasse apenas “os rabiscos de absorção” (108) que estão nele, isto é, o rasto de uma escrita já indecifrável. Estamos a falar de ilusão, o seja, de engano (o autoegano); estamos a falar da literatura mesma, que simula a vida (118), que ao a simular revela a sua verdade, e que é a única maneira de poder vivi-la, porque “a vida é absolutamente irreal na sua realidade direta” (119) Mas ilusão é também o que se espera, e a esperança desde livro é não o ter de escrever. Se Bernardo Soares o escreve, não é pela sua votande, senão por falta dela. Por isso diz: “Este livro é a minha cobardia” (146).
Trata-se então de explicar por que é impossível este livro que temos nas mãos e lemos e por que essa impossibilidade é a condição do seu próprio desenvolvimento inconcluso.
2. O livro caixa sem saldo
Pessoa atribuiu a principio o Livro do desassossego ao heterónimo Vicente Guedes e depois a Bernardo Soares, que “herdou” do primeiro a profissão de ajudante de guarda-livros. Há um contraste evidente entre escrever no livro-caixa os créditos e os débitos e o “devaneio” do Livro do desassossego. No primeiro caso copiam-se com exatidão números numa folha pautada. O devaneio, porém, não tem pautas que norteiem à escrita; compõe-se de narrações e reflexões que não seguem uma ordem. No entanto, o devaneio e os lançamentos entrecruzam-se às vezes, então os asentamentos das verbas nas linhas pautadas do livro-caixa são “os versos da epopeia comercial de Vasques e Cª” (255), onde Bernardo Soares trabalha, embora a firma seja escura e tenha uma historia inútil. É un entrecruzamento negativo, como a profisão de guarda-livros é referente negativo do que sente e pensa ele próprio: “Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso sentir e pensar como negação o a fuga do cargo” (128). A evocação, afinal, é o contrário de uma epopeia: uns viajantes sossegam-se no convés de um navio. Mas a mistura do plano da realidade (fazer lançamentos) e do que está a imaginar (os viajantes) dá um erro no apontamento: o crédito era débito. Este erro cobra (e aqui o verbo não deixa de possuir também um sentido comercial) uma dimensião maior se pensarmos o Livro do desassossego como os “apontamentos espirituais” (375) de um diário (embora não seja só isso), que são como os assentamentos de verbas no livro-caixa: “Escrevo a minha literatura como escrevo os meus lançamentos- con cuidado e indiferença” (41). De facto, Bernardo Soares vale-se, nalguns trechos, de uma linguagem comercial para falar da sua vida e obra. Vê a sua vida como um fracaso “comercial”. Diz que é um “recibo sim assinar” (136). Parece que as contas não dão. Noutro trecho refere-se a “ausencia de saldo” da sua vida. Neste caso a diferença entre o crédito e o débito, entre ganhar e perder, é zero: “em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência de saldo de mim mesmo, como um equilíbrio involuntário que me desola e enfraquece” (351). O saldo não é nem a favor nem contra. Há um equilibrio. Mas uma empresa cujo saldo é zero nem sequer é uma empresa fracassada, é inutil, ou é um fracasso porque é inútil. Este fracasso estende-se a vida em geral. Os armazéns de fazendas, o chefe de escritório, o patrão e o guarda-livros mesmo mudam-se para metáforas da vida em geral. Ao final, os apontamentos no livro-caixa dão um saldo contra nós: “Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós” (337).
O Livro do desassossego fala do inevitável fracaso da vida e também do fracaso dele mesmo. A vida é a escrita da vida. Por isso, o maior desejo de Bernardo Soares é que ficasse alguma frase da qual se sentisse: “Bem feito” (307) Mas é curioso que este desejo se compare com a atividade mecânica de “inscrever” ou “copiar” números no livro-caixa, que é o “livro da minha vida enteira” (307) Mas não é isto a manifestação certa da imposibilidade deste livro, uma escrita que é uma copia fracassada de uma vida fracassada?
Primeira impossibilidade: O Livro do desassosego e um Caixa ou diário, cujo balanço é a sua própria falência.
3. Razões para não agir
Como Bartleby, o personagem de Melville no romance homônimo, Bernardo Soares recusa a ação. Bartleby é um escrivão que se nega a escrever: “Preferia não o fazer”. Não diz não direitamente à ação, manifesta uma preferênça. Situa-se no espaço do possível: o que pode ser, mas ainda não é. Podia fazer qualquer coisa, embora não a preferisse. Ao fim e ao cabo, não agimos ás vezes contra as nossas preferênças? Porque afinal não podemos deixar de atuar. Bartleby fica, no entanto, no possível mesmo. Mas nessa situação não se pode estar, porque ninguém é só possível, é uma situação paradoxalmente impossível. Por isso, a única saída para Bartleby é deixar-se morrer. O mutismo derradeiro.
A estratégia recusativa de Benardo Soares é, pelo contrario, loquaz. O guarda-livros e o escrivão têm um trabalho semelhante: ambos copiam. Mas Bartleby não escreve; Bernardo Soares, porém, diz que sempre será guarda-livros (307), e não deixa de escrever, não pode: escrever é uma adicçao (146). Essa estratégia recusativa segue uma lógica que podiamos chamar, utilizando uma palavra à votande de Pessoa, do despir. Tirar as peças de roupa é despojar-se do que leva a agir até atingir uma impossível nudez. Impossível porque sempre vestimos algum fato, tão colado à nossa pele que não reparamos nele. Somos inevitavelmente “pressas da ilusão” (224), do artificio (A metáfora clássica da vida como teatro é recurrente neste livro). Não há um “homem nu” ao final do despojamento. Bernardo Soares hesita entre a procura desiludida (109) de um “si próprio”, um “eu sem condições” (41), que pode ser uma fição, e a multiplicação dele até não ser ninguém ou qualquer outro.
Quais são as vestes que Bernardo Soares tira? Despoja-se da política e da moral. O espíritu crítico da geração anterior deixou apenas um legado de destrução de todas as doutrinas e nenhuma certeza. O ceticismo faz com que toda ação fique sem justificação e, portanto, poderia ser outra qualquer. Então, só se pode agir por agir, ação sem pensamento, hiperatividade, que é o que Bernardo Soares observa nos seus coevos, e que se calhar é uma observação ainda mais pertinente à nossa época: “Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a vivier e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos porcessos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação” (164)
Não tem sentido agir com os outros, mas também não reagir sobre um mundo “sujeito a leis fatais” (32). Bernardo Soares asume un fatalismo que faz com que toda ação seja inútil. Do mesmo modo, toda re-ação, que não é senão a ação do mundo sobre nós, porque todo o que fazemos está submetedo a leis das que não podemos escapar.
Despoja-se ainda por cima da sua “personalidade civil”. No Prefacio, onde Fernando Pessoa narra o econtro com o autor do Livro do desassossego, apresenta-o como um homem afastado de qualquer convívio: nem pertenceu a nenhum agrupamento ou multidão, nem seguira curso nenhum (26). Foge das relações socias. Até dar os bons dias asemelha-se-lhe uma grande audácia. O convivio intimida-lhe; a presençã mesma de outrem é para ele dolorosa (438). Sente vergonha até do próprio corpo, um “monte de estrume” (73). Uma bela expresão resume esta condição: “pudor de existir” (131); isto é, pudor de se mostrar, de ser exterior.
Bernardo Soares não só recuca a ação, não só se depoja da sua personalidade civil, mas também da vida na sua exterioridade mesma. Mostra-se incompetente para a vida (193), embora seja esboçar gestos (437). Como se a vida fosse uma aprendizagem e ele um aluno incompetente: “Nunca aprendi a existir” (193). A impossibilidade de apreender (no duplo sentido da palabra: apoderar-se e perceber) tem por causa que a vida é irreal e absurda. Só pode ser vivida pelo homem de ação, porque o homem de ação não pensa, possui, ou em sua dimensão biológica, como animal, que é a maneira de olhar para os homnes quando Bernardo Soares adopta uma posição aristocrática desdenhosa: “Se considero com atenção a vida que os homem vivem, nada encontro nela que a diference da vida que vivem os animais” (155)
O Livro do desassossego apresenta-se como uma autobiografia, no entanto nele se recussa a ação e a vida. Por isso, é uma “autobiografia sem factos”, “uma historia sem vida” (40). Se se recusar a ação, a vida fica oca de factos. E sem factos, que é o que pode conter a vida? Que contém a vida se nela nada acontecer? Tal como no caso de Bartleby, nada se pode contar.
Segunda impossibilidade: O Livro do desassossego é uma autobiografia que recusa a vida mesma de que fala, que a torna vazia (de factos) ao exprimé-la. Por isso, diz Bernardo Soares que a “vida perjudica a expressão da vida” (117)
4. Estar-à-janela
Se se recusar a ação, só fica a contemplação. “Renuncia por modo e a contemplação por destino” (31), propõe, quase como uma consigna, Bernardo Soares, se tiver sentido uma consigna para não agir, que é ao que se renuncia. Contemplar é “estar-à- janela”: “Se a nossa vida fosse um eterno estar-à-janela, se assim ficássemos, como um fumo parado, sempre, tendo sempre o mesmo momento do crecúsculo dolorido a curva dos montes. Se assim ficássemos para além de sempre! Se ao menos, aquém da impossibilidade, assim pudéssemos quedar-nos, sem que cometêsemos uma ação, sem que os nossos lábios pálidos pecassem mais palavras!”(109) A mesma posição que Bartleby, embora ele fite através de um janelo palido a parte ceja de tigolo em frente, não “um crepúsculo dolorido”. Bartleby olha, mas nada vê, como também não fala ou escreve. Parece que ao contrário de Bernardo Soares.
Há duas janelas através das quais olha Bernardo Soares: a do quarto andar alto de um prédio na rua Douradores, onde mora, e, na mesma rua, a do escritório onde trabalha. No entanto, “estar-à-janela” não é uma simples posição física, senão uma metáfora complexa de uma posição espiritual. Pode-se estar-à-janela passeando, à beira do Tejo ou no elétrico A janela divide o espaço en dois âmbitos: dentro e fora. A parte lá fora é a vida exterior; do lado de dentro fica a vida interior. Mas não são dois espaços isolados. Estar-à-janela é o lugar da interseção do espaço lá fora e do espaço cá dentro. O limiar é onde se produz a contemplação. Contemplar exige uma distância em relação ao contemplado, o afastamento da vida exterior que impõe as vidraças, a recusação da vida, que, no entanto, está lá. O limiar (se nesta posição se puedesse permanecer) é o lugar onde a vida fica reducida a consciência, mas onde nada se passa. (176).
A contemplação é um processo de fora para dentro: “Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior” (375). Mas logo a seguir, o interior volta-se exterior, como se fosse um mundo alheio, mas alheio apropriado. Todos os crepúculos, na sua realidade exterior, são iguais, mas o crepúsculo contemplado é “dolorido”, e não mudaria se fosse um crepúsculo dolorido sonhado, porque quando pensamos o que sonhamos é como se estivermos a vé-lo. O que não é apropriado, mudado em pensamento próprio, não é real: “só a minha autoconsciencia é real” (189). Por isso, a contemplação só poder ser de si próprio. Quem é ese “si próprio”? Quem sou eu para mim?”, pergunta-se Bernardo Soares. E responde: “Sou una sensação minha” (147). O universo mesmo é eu (134). Mas se só autoconciencia é real, as sensações não são o simplesmente sentido, como para o homem que vive uma vida exterior, senão pensado: “Eu sinto com o pensamento” (84). Mas a diferença das sensações próprias e as doutros é o que nelas há de sonho (272). O sonho é o mais próprio, o mais eu. Assim, ao contemplar os outros, os outros são o seu sonho: “Faço dos outros o meu sohno” (219). Mas nem o sonho se encontra.(168). Perde-se num devaneio que não cessa. O devaneio, levado até ao fim, é olhar sem compreender, por isso no limiar nada se passa. Atingiria-se a contemplação pura, despojada de qualquer ação, incluso da ação de pensar: “Não querer compreender, não analizar. Ver-se como a natureza; olhar para a suas impressões como para um campo –a sabedoria é isto” (220). Mas então, o eu é simples exterioridade. O conhecimento do eu é o seu descononhecimiento, e o desconhecimiento derrarerio é o sonho que não se sabe que se sonha e ninguém pode conhecer, nem nós próprios; o sonho que é simplesmente sono: “Se um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão que concentrasse toda a arte en mim, escreveria uma apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento de tudo quanro é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro” (151). Dormir: a abolição final a ação, antes da morte, ou tal vez seja meior dizer “adomecer”, quando os olhos ainda estão abertos trás pálpebras fechadas: “Do alto de minha janela do escritório eu vou vendo, como os olhos tardos em que as pálpebras estão dormindo” (357). Não é esta a mesma posição que
Ao final do romance de Melville, Bartebly está deitado ao pé de um muro no pátio da cadeia. Parece dormido, mas está morto, ou ao contrario. Dormir é como estar morto: “Isto que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte” (165). Afinal, as posições contemplativas de Bartleby e Bernardo Soares não deixam de concordar.
No limiar da janela, quem olha está a dormir ou “fazendo sono” (347), que é uma expressão muito mais exacta. Esta é a lógica derradeira de uma contemplação que aboliu a vida e o pensamento (“apagamento integral da vida e da alma”) e sobre a que cai o manto negro do sono. Temos aqui a terceira impossibilidad: o Livro do desassossego é a escrita de alguém que está a dormir.
5. A escrita da escrita
A procura de si próprio, sempre incompleta, ás vezes desiluida, de Bernardo Soares, é a procura da expressão de si próprio. Identifica-se a tal ponto com a sua escrita, que a sua escrita é mesmo ele: “sou em parte a mesma prosa que escrevo” (175). A aspiração a uma prosa requitada é então o desejo vemente de perfeição pessoal; desejo dolorido, pois não o pode alcançar. Afinal, exprimir é errar. Por isso, a insistência no fracasso, a tristeza que percorre o livro todo, a expressão patética ás vezes. No entanto, para alguém que afirma que o ”entusiamo é uma grosseria” (191), há pelo menos um momento no livro no qual Bernardo Soares não tem pudor para mostrá-lo. Diz que gosta das palabras, transmudadas para entidades que tem qualidades sensíveis, para além dos seus significados. A escrita volta-se gozosa em si mesma: “escrevo sem querer pensar […], deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas” (226).
O que sente é para escrever o que sentiu. A literatura muda-se na verdadeira realidade. As metáforas são mais reais que a gente (149). Num trecho que é uma conversa imaginada, pregunta se a conversa pode ser real e como parece que num romance “não seria admitida” (299), não é real. Deseja vivir a vida como se fosse um romance e pensa-se como se já fosse uma “figura de livro” e a sua vida ”lida”, uma página de um livro (50
No limiar deste processo de procura, que é de isolamento e singularização, a expressão de si próprio impricaria uma linguagem intrasferível ou que nada significa, que é apenas significante: “Não escrevo em português, escrevo eu mesmo” (352). Mas a literatura é criação, por isso a procura de si próprio é a própria criação. A verdade é a literatura porque a realidade é uma criação da escrita. Então o escritor asume o papel do Deus criador judeu-critão, que cria pela palavra, mas um deus que se cria a si próprio, e tão imperfeito que nunca termina, porque nunca está contente da sua obra.
Quem escreve este livro pensa-se a si próprio como uma personagem de romance. Fernando Pessoa, a diferença de outros heterónimos, chama a Bernardo Soares “personagem”. Na gravura de Escher Drawing Hand a mão que desenha uma mão está a ser desenhada pela outra mão desenhada a primeira. O facto de haver duas mãos permite a respresentação. Se huvesse uma sóa é difícil ver como poderia representar-se Aqui temos um personagem que está a escrever um livro no qual se cria como personagem. Só a uma mão. Esta é a terceira impossibilidad: o Livro do desassossego é a escrita do personagem de um personagem
( M.C. Escher. Drawing Hand, 1948. www.mcescher.com)
6. O não leitor
Como ler um livro que se recusa em sua própria escrita, cujo desenvolvimento é o seu fracaso, um livro que quem o escreve preferia não ter de escrevê-lo, quem o escreve não pode escrevê-lo, porque é o personagem adormecido do livro que está a escrever? Mas este livro é-nos oferecido como “um pesadelo voluptuoso” (193). Propõe-se como gozo estético virado para o decadente. Mas também como coisa “bela e inútil” (435). Bela porque é inutil, é inútil porque nada ensina, e nada ensina porque nada diz. É um livro para que o leitor não o leia, mas o tenha: “O triunfo supremo de um artista é quando ao ler suas obras o leitor pefere tê-las e não as ler” (412)
Javier Santos Barriuso Revilla