I. Teoria mínima do paradoxo
Um paradoxo não é uma contradição simples. Não é dizer “a” e “não a” ao mesmo tempo. Isto não leva a parte nenhuma, é estéril. Num paradoxo há duas possibilidades excludentes. Nisso parece-se a uma contradição. Mas o paradoxo contém a promessa de uma superação das duas possibilidades. Se a promessa se cumprisse, o paradoxo desapareceria. Por isso, o paradoxo assenta-se numa tensão permanente, que põe em movimento o pensamento.
Pessoa gosta dos paradoxos. Por exemplo, no conto O banqueiro anarquista, o próprio título é um paradoxo. Por isso, o interlocutor do esquisito banqueiro diz:
– Essa é boa! Você anarquista! Em que é que você é anarquista?… Só se você dá à palavra qualquer sentido diferente. (O banqueiro anarquista e outros contos. Relógio D’ Água, Lisboa, 2015, p. 11).
Mas o banqueiro sustenta que emprega “a palavra no sentido vulgar”. É banqueiro, mas também anarquista. Este paradoxo é o que faz mover o relato, que é um longo e complexo razoamento. O conto termina igualmente com um paradoxo. “O verdadeiro anarquista quer a liberdade para a humanidade inteira…” (p. 41), diz o interlocutor. Mas replica o banqueiro: “cada um tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a mim” (p.41). E a seguir: “Se um homem nasceu para escravo, a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania” (p. 42). Então o anarquismo é compatível com a tirania? Do ponto de vista moral, o banqueiro anarquista parece um cínico. Além disso, o importante é o percurso do razoamento. No paradoxo o pensamento “está a pensar” e “dá para pensar”. Não há uma conclusão, senão devir, como o correr de um rio:
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme. (Poemas de Alberto Caeiro, XLIX).
Um exemplo dos Poemas de Alberto Caeiro. O poeta está a ler Cesário Verde “até me arderem os olhos” (III) (Pode-se ler com mais intensidade e dizê-lo com uma beleza mais certa?) e diz dele “que andava preso em liberdade pela cidade”. “Preso em liberdade”: parece contraditório. Se está preso, não é livre; se é livre, não está preso. Cesário Verde é um camponês que anda pela cidade. Por isso está preso. Mas anda pela cidade como um camponês. Olha a cidade como se olhasse o campo. Neste sentido é livre… mas está preso. A contradição não se resolve. Está a resolver, mas não fica resolvida. E não pode ficar, porque a contradição entre a Natureza e a cidade, entre o natural e o cultural, não é só de Cesário Verde, mas, se calhar, é a nossa própria. Alberto Caeiro identifica o natural com a liberdade e o cultural (artificial e aprendido), com a falta de liberdade. A procura da liberdade é a procura de uma experiência direta, sem mediações da Natureza. É possível esta experiência? Cesário Verde tinha uma grande tristeza, uma tristeza “como esmagar flores [natural e livre] em livros [cultural ou aprendido e preso]” ou como “pôr plantas em jarros…”. O paradoxo fala da “grande tristeza” do homem desenraizado (“E tivesse raiz, ligação direta com a terra”, diz Alberto Caeiro) da Natureza, mas sem poder deixar de olhar para ela, como se fosse o paraíso perdido. Perdido, mas sempre desejado. Não é esta a saudade de Alberto Caeiro, a nossa saudade?
II. Os paradoxos e a boneca russa
Pode-se dar a seguinte hipótese: o âmago do pensamento da poesia de Fernando Pessoa nos heterónimos é o paradoxo. Vamos ver isto no heterónimo Alberto Caeiro. Os paradoxos estão dispostos uns sob os outros, como numa boneca russa. Há uma última boneca, a chave que resolve todas, o segredo bem guardado que revela a solução? Sim, mas se calhar para ser um paradoxo.
III. O guardador de rebanhos sem rebanhos
O paradoxo mais superficial: Alberto Caeiro é um guardador de rebanhos que não tem ovelhas nem cordeirinhos e por isso nunca os guardou. Ele, que é uma ficção, finge ser um poeta pastoril, como Virgílio. Embora ele nunca lesse Virgílio (“Para que o havia eu de ler?”, XII), sabe que é também um fingidor porque os pastores são Virgílio próprio e o amor só literário. Os rebanhos de Alberto Caeiro são os seus pensamentos (IX). É um pastor que guarda os seus pensamentos. Como os rebanhos, as suas ideias olham-se e veem-se:
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias o e vendo o meu rebanho
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende. (I)
IV. Os pensamentos não são pensamentos
“Fui o único poeta da Natureza”, diz Alberto Caeiro. Um poeta que pensa a Natureza, mas que para a pensar tem de deixar de pensá-la: “Acho tão natural que não se pense…” (XXXIV). Como é possível isto? O natural é sentir, por isso os pensamentos são sensações. Pensa-se com os olhos, os ouvidos, as mãos… O “Descobridor da Natureza”, assim se chama a si próprio, não diz o que pensa, senão o que sente. Por que rejeitar o pensamento? O pensamento rompe com uma relação direta com a Natureza. Não olhamos nem ouvimos a Natureza, pensamos que a olhamos e a ouvimos. Mas também separa o homem de si próprio. Quando pensa o homem está doente. Estar doente é não ser natural. As coisas e os animais não pensam, são a Natureza. Por isso, o poeta deve “desembrulhar-se” dele próprio para ser ele, “um animal humano que a Natureza produziu” (XLVI). Se se pensa nada se compreende, mas compreender é sentir e não saber.
V. A Natureza não é a Natureza
O único poeta da Natureza afirma “que a Natureza não existe”. Não há um todo a que pertençam as coisas, só há coisas. Neste sentido, Alberto Caeiro é nominalista: só existem coisas concretas e “todas diferentes umas de outras” (Poemas inconjuntos, PI). Os nomes são “letreiros” e os letreiros não são as coisas. Mas que é que são as coisas? As coisas sentimo-las. O que é sentir as coisas? Sentir, o verdadeiro sentir, é como a ave que “passa e esquece” sem deixar rastro (XLIII), é deitar-se “ao comprido na erva” (IX). As coisas são instantes do tempo, mas sem tempo “que as mede” (PI). Alberto Caeiro refere-se a uma experiência plena da realidade. Uma experiência que é “ver podendo dispersar tudo menos o que se vê” (PI). Trata-se de sentir sem saber que se sente; tratase de estar “distraído”, no duplo sentido da palavra: sem atenção (isto é, sem pensar) e divertido, como as crianças que estão a brincar. Portanto, não há coisas nessa experiência, há sensações. O nominalismo leva ao sensacionismo, mas um sensacionismo muito especial.
VI. Sentir é sentir pela primeira vez: “o pasmo essencial”
Sendo Alberto Caeiro um poeta da Natureza, não parece ter interesse nas coisas concretas. Serve-se muito da palavra mesma “coisa”. Fala de árvores, erva, flores, do céu azul, das nuvens, do sol, e também da casa (por vezes caiada), das janelas (as janelas são muito importantes na poesia de Pessoa). Estas coisas não têm singularidade (a árvore pode ser qualquer árvore, e deste modo nos outros casos) e “coisa” é a palavra que compreende todas as coisas… e nenhuma. No entanto, como temos visto, as coisas são singulares. Novamente, um paradoxo.
Alberto Caeiro tenta mostrar as coisas na sua máxima simplicidade, como os desenhos de um menino:
Um céu azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo em baixo como se viesse negro depois. (PI)
Esta maneira de descrever não é (deliberadamente) infantil? Parece que sim. E não pode ser casual. A experiência do sentir que Alberto Caeiro pretende expressar (que se calhar só se pode expressar poeticamente) é a primeira experiência, como se a cada momento o mundo fosse novo, como se fosse uma experiência nova deveras. E só pode ser assim, se uma criança reparasse ao nascer que estava a nascer:
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo. (II)
Vale mais a pena ver uma coisa pela primeira vez que
conhecê-la. (PI)
O “se” do poema refere-se a uma condição impossível: a criança nasce, mas não repara que nasce. Sim, é paradoxal. No entanto, neste limite extremo coloca-se a essência da experiência do “pasmo essencial”. O radicalmente assombroso é o realmente novo, e todo é novo para a criança que está a nascer. Não nos lembrarmos de que com o assombro, é já um tópico (encontrámo-lo em Platão e Aristóteles), começa a filosofia, (embora Alberto Caeiro diga que não tem filosofia, “tem sentidos”), começa a experiência metafísica do ser o da Natureza. Por isso, a sua poesia percebe-a como uma coisa natural:
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural –
Por exemplo, a árvore antiga. (I)
A palavra árvore seria a árvore, não um rótulo que pomos para todas as árvores. Quando a criança está a desenhá-lo pela primeira vez, nesse momento, trata-se de uma experiência de assombro, com anterioridade a toda aprendizagem. A escritura poética seria então um acontecimento natural. Mas, como para nós, os acontecimentos naturais são sensações, os versos têm também o mesmo jeito e o poeta não é “nem sequer um poeta”, só vê. (PI) Escrever é –diz Alberto Caeiro- “Como dar-me o sol de fora” (XLVI). Então, a experiência do “pasmo essencial” não se pode expressar, sente–se, “como o sol de fora”. Enfrenta-nos com os limites da linguagem, pois a linguagem não pode deixar de impor “nome às coisas” (XXVII). Mas Alberto Caeiro não deixa de tentar expressá-la. Relaciona-a com o amor:
Se falo na [?] Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…
O amor de que fala Alberto Caeiro é mais contemplativo do que ativo. Embora se trate de uma contemplação sem conhecimento. Ama-se porque não se sabe. Portanto é um amor baseado numa confiança cega, que não faz perguntas, que aceita as coisas como elas são, e que se opõe a qualquer ação: “Vou onde o vento me leva e não me / Sinto a pensar” (PI). O vento manda: o amor está traspassado de fatalismo. (“fatalidade sublime”, PI) Esta confiança na Natureza exprime-se através de palavras como “calmo”, “tranquilo”, “sossego”, “familiar”, “caseiro” ou “simples”. A Natureza é o lar, a casa. Para ler os seus versos assente-se na cadeira ao pé da porta aberta da sua casa (I). A porta deve estar aberta porque a verdadeira casa está fora. Mas há uma porta, por isso o homem não está completamente na Natureza como no seu lar.
VII. A aprendizagem de desaprender
Para alcançar a experiência do pasmo, na qual a Natureza seria o lar é preciso aprender a desaprender. De novo um paradoxo. Na realidade, temos visto já, que a ligação certa (a experiência do “pasmo essencial”.) com a Natureza é um percurso de despojamento: do pensamento, da Natureza como um todo, da linguagem com a qual falamos das coisas… até chegar a essa experiência que é inefável e que, ao mesmo tempo, não podemos deixar de falar dela. Trata-se agora de dizer qual é o procedimento geral, que não é outro que desaprender. Devemos tirar tudo o que carregamos e que não é natural. “Tristes de nós que trazemos a alma vestida”, diz um verso belíssimo de Alberto Caeiro. O aprendido (podemos dizer a “cultura”) afasta-nos da Natureza. Qual é o vestido que temos de tirar? Outra vez o paradoxo: o vestido é o interior, é a alma. “Antes de sermos interior somos exterior./ Por isso somos exterior essencialmente” (PI), sustenta Alberto Caeiro. Isto é materialismo, embora seja uma filosofia e o poeta diz para rechaçar toda a filosofia. O importante, além disso, é que para voltar à Natureza temos de nos despojar do aprendido, isto é da cultura. A palavra chave, que sintetiza este processo, é “simplicidade», se calhar tão definitória do feitio português.
VIII. Do paradoxo à tautologia: a primeira ou a última boneca
Temos então um pastor sem rebanhos, um pensamento sem pensamento, uma Natureza sem Natureza, coisas que não são coisas, sensações que não são sensações, senão sempre a primeira sensação, despojadas do pensamento e da linguagem… Temos uma procura que nos leva a um lugar onde a linguagem mostra-nos o seu limite (“grau zero da linguagem”?), mas um lugar de que não podemos falar, porque se falarmos, situar-nos-íamos fora:
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas. (XXXVIII)
Mas falamos, Alberto Caeiro fala. Que é o que ele diz? Tautologias; isto são afirmações certas que nada significam, como “uma coisa é uma coisa”. Algumas delas:
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. (XXIV)
[…] digo da pedra, “é uma pedra”.
Digo da planta, “é uma planta”.
Digo de mim, “sou eu”.
E não digo mais nada. Que mais há a dizer? (Poemas inconjuntos)
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor. (XL)
Eis a primeira ou a última boneca: “uma tautologia”, porque no fundo todas são a mesma. Por que então são repetidas tantas vezes? Nos poemas a seguir as tautologias repetem-se sob espécie de uma oração:
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores. (XXVIII)
E também:
Bendito seja o mesmo sol de outras terras (XXVVIII)
O Deus de Alberto Caeiro é a Natureza. São versos de agradecimento às coisas por ser o que são. Palavras afirmativas, de louvor, que repete uma e outra vez. Não é como se fosse um conjuro a Natureza ela própria perdida? As coisas são as coisas, mas escapam-se de nós, porque a experiência de ligação completa com a Natureza é impossível. Temos linguagem, pensamos… não somos naturais. Portanto, não só os filósofos estão doentes, mas todos. Este é o drama metafísico de Alberto Caeiro, uns das personagens do “drama em gente”, talvez o drama pessoal de Pessoa e do homem em geral. Voltamos onde partimos, à nossa saudade. Por isso, a única metafísica possível é uma metafísica composta de tautologias. Mas uma tautologia não diz nada, simplesmente afirma: “A única afirmação é ser” (PI). Com esta afirmação começa a metafísica ocidental faz vinte e seis séculos. Lemos no poema de Parménides: “O ser é e o não ser não é”. E mais nada, isto é tudo, mas o que importa é o resto.