Ainda há lugares onde o tempo não tem pressa. Lugares esquecidos da memória das pessoas, onde voltam a conviver as tradições com a modernidade, digo voltam, relembrando-me de Uchabe: A importância da presença dos brancos nas sociedades indígenas, como fator que leva a sua progressiva desintegração. Os efeitos devastadores do cristianismo na África, criando uma fenda entre as gentes de Deus e as gentes do mundo. Minorando os conhecimentos espirituais da sociedade tradicional.
A Guiné Bissau, esquecida depois da descolonização, é um país onde a palavra das pessoas ainda tem valor, e isso,a palavra,como meio de comunicação é coisa que não teria de se perder. Falar é a maneira de conhecer a Guiné, sair à rua e falar com a gente que mora lá, é quase a única forma de percorrer o país, sem eles é praticamente impossível.
E é que a Guiné (terra de negros), volta a ser um país,onde as suas origens estão presentes com as diferentes etnias,e a suas diversas religiões e tradições. Quase toda África é Animista, o animismo está baseado na crença do que qualquer objeto, lugar o facto, tem consciência ou vida própria, pelo qual, que está possuído por um espírito, todo o que fica em rededor é sagrado ou pode sê-lo. Algumas destas étnias, creem num criador, embora, para as questões cotidianas, recorram aos espíritos simples e divindades menores, que atuam como intermediários. Os entes mais próximos aos vivos, são os próprios antepassados, eles cuidam dos vivos e atuam de intermediários com os seres superiores.
O animismo é o ponto comum de todas as diferentes etnias que povoam a Guiné Bissau, já que muita da população é católica e maioritariamente muçulmana. Mas se falarmos dos Mandingas, sabemos que foram um grande povo que criaram um império, o império de Gabú, hoje por hoje são muçulmanos, ainda para as questões cotidianas recorrem ao Marabú,quem lhes dá proteção. Também entre os muçulmanos estão os Fula, outra grande etnia que mantem as suas crenças sincretistas e ancestrais, creem nos espíritos bons e maus, e para se protegerem vão ao curandeiro.
As histórias mais curiosas, foram-me contadas por um Balanta, o Carolino, com quem percorri as Bijagós, moram lá as tribos do mesmo nome. Os Bijagós são uma sociedade matrilineal, onde o poder do chefe tem uma grande relação com seus antepassados, é o chefe quem decide a distribuição das terras, por isso não todas as ilhas são habitadas, muitas são sagradas e mantém-se como antigamente. A ilha de Soga é uma das mais sagradas, ninguém mora lá, nem morou. Quando alguém morre vai lá, a família encontra-se com o espírito lá e se faz um almoço de tradição no mato. Outra ilha sagrada é a ilha de Jata, o mato é sagrado e nenhuma mulher pode ficar lá, é só para os homens, diz-se que ali ninguém rouba nem mata,se alguém o fizesse morreria lá ou dantes a chegar a outra ilha. Além disso há zonas da água que não podem ser atravessadas para ir a nenhuma parte.
Nesta altura é um dos países mais pobres do mundo, quem nada tem, nada tem que perder, pelo qual compartilhar com outros o pouco que se tem é uma forma de sobreviver. O sentimento de comunidade é inato na sua natureza. E podemos vê-lo nas portas abertas das casas, nas crianças a jogar nas ruas com um simples pau e uma jante, os animais como galinhas, cabras, porcos e vacas misturados com as pessoas, é uma grande sensação de tranquilidade.
Acho que nós, os europeus temos perdido essa tranquilidade e essa confiança nos outros, quase podemos dizer que a desconfiança é inata em nós.
Ter a oportunidade de morar numa casa de uma família de lá, faz com que reparemos que vivemos ao redor de coisas que achamos imprescindíveis, mas quando estamos lá, apercebemo-nos que as prioridades são outras. A televisão, o Wi-Fi o último telemóvel do mercado, não nos fazem mais felizes nem tem nenhum valor alí, onde não há estradas asfaltadas, nem água
canalizada, nem luz elétrica pública, só um gerador três o quarto horas ao dia.
Quando temos consciência do esforço que supõe para eles, ter na sua casa brancos, é quando somos conscientes do que importa em realidade.
Falamos de famílias na verdade compostas por muitos membros, onde muitas vezes só podem comer uma vez por dia, e sempre a base é arroz,algumas vezes com peixe, outras com verduras mas para muitos os acompanhamentos são um luxo.
No momento que percebes isso, nesse momento, é onde se produz essa união verdadeira com a família, quando sabes que é necessário tirar água do poço para que todos possam tomar um banho, e tu como branca europeia não o tinhas feito nunca, porém o tentas entre gargalhadas da família, quando vais ao mercado e compras café e bolachas de chocolate, porque sabes que para eles é um luxo uma lanche assim, mandar vir mais comida num restaurante, porque os miúdos sentaram-se à tua mesa, e ir a porta do mercado de peixe a comprar o almoço ao amahecer. Sentar- se no chão com a mãe a aprender a sua culinária, cozinhar com paus e carvão na traseira da casa e manter uma conversa enquanto a comida está a fazer-se é coisa fora do comum nestes tempos.
Para nós estar na África é sinônimo de aventura, a maioria quando pensa na África, pensa em safaris, tribus exóticas e grandes animais na savana. O surpreendente foi quando chegamos à Guiné e a gente perguntou-nos que fazíamos lá, porquê íamos lá. Pelos vistos Guiné é um dos países com menos turistas do mundo, quando os portugueses foram embora , já quase nenhum branco voltou por lá, só alguma empresa de construção, e algumas ONG. A certeza é que a natureza é uma maravilha e em parte graças a essa falta de turismo, preservaram-se os manjares, as florestas, as praias virgens, etc.
Além disso pode perceber-se a história do país a cada passo que se dá, grandes prédios abandonados que foram construídos pelos portugueses para uso governamental, as casas dos governantes destruídas na guerra da independência e sobre tudo as antigas cidades que foram usadas para ter em cativeiro milhões de pessoas no comércio transatlântico de escravos, tudo isso ainda se pode perceber no ar. Mas também como pouco a pouco o desenvolvimento está pronto, com a ganadaria, a agricultura e a educação, ainda falta muito, mas já as crianças todas vão à escola e falam diferentes línguas,criaram-se diferentes movimentos em defesa da mulher e o sentimento de superação cada vez está mais presente na sociedade.